A jornada de Chay

O último mês de julho foi marcante na vida de Chay. Ao mesmo tempo em que começava a despontar no Botafogo, vivia fortemente a expectativa de se tornar pai biológico pela primeira vez. Diante desse turbilhão de responsabilidades e emoções, decidiu recorrer à ajuda da mãe, Dona Rose. Prontamente, ela atendeu ao chamado, e deixou a pacata e bela Ilha Grande, na região da Costa Verde, para morar durante um tempo com o filho e a nora, em Niterói.

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Às vésperas do parto, saíram um dia para fazer compras em um supermercado, a ideia era abastecer a casa para os trabalhosos primeiros dias da vida do bebê – quem tem filho pequeno sabe. No mercado, mãe e filho se distanciaram com seus carrinhos, enquanto buscavam os mantimentos nas prateleiras, até que Dona Rose avistou um homem alto seguindo Chay pelos corredores, insistentemente.

– Eu moro numa área muito tranquila. Então, não estava mais acostumada com a rotina de metrópole. E aí eu fiquei apreensiva, porque a gente só ouve relato de violência, não é? Na minha mente veio duas coisas: ou era assalto ou discriminação – pensou.

Preocupada, Dona Rose começou a acompanhar a situação de longe, no encalço do estranho que, de repente, de forma abrupta, abordou Chay no corredor do mercado. Nessa hora, ela se meteu entre os dois e pôde ouvir o pedido do homem que perseguia seu filho.

– O rapaz disse: ‘você não é o Chay?’ Ele estava de máscara, por isso que o rapaz ficou andando atrás dele, para ter certeza. Ele se identificou, aí o cara: “poxa tira uma foto comigo”. Aí eu fiquei mais tranquila, né? Mas não estava acostumada. É o que ele quis, né? A gente vai se adaptando às novidades.
Ao que tudo indica, Chay e sua família vão se deparar muito mais vezes com o afago dos fãs e torcedores. De julho para cá, o jogador manteve o processo de ascensão de sua carreira, e é um dos destaques do Alvinegro, que arrancou do meio da tabela para o G-4 da Série B, em busca do retorno à primeira divisão.

Chay, a esposa grávida e o filho – Arquivo Pessoal
Chay, a esposa grávida e o filho – Arquivo Pessoal
Ele é o segundo maior goleador do Botafogo na Série B, com 8 gols marcados. Chay também se destaca por sua capacidade de articular jogadas, criando espaço com dribles e servindo aos companheiros, como na vitória deste sábado sobre o Náutico. Até o momento, soma 4 assistências. Além da bola, o jogador é carismático e conquistou o coração dos Alvinegros.

Mas, como diz o ditado da internet, “quem vê close não vê corre”. O ge volta às origens de Chay. e mostra o percurso do atacante que vive sua primeira oportunidade em um clube grande, depois de uma jornada cheia de percalços no esporte. O começo no futebol de areia para curar uma alergia, a passagem pelo futsal antes de ganhar os campos, a ida para o mercado asiático, a quase desistência da carreira, até recuperar no Fut7 o encanto dos gramados (sintéticos), que pavimentou o caminho de volta ao futebol profissional. Rumo à melhor fase.

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Chay é o vice-artilheiro do Botafogo na Série B, com 8 gols – Vítor Silva/Botafogo
Chay é o vice-artilheiro do Botafogo na Série B, com 8 gols – Vítor Silva/Botafogo
FUTEBOL COMO REMÉDIO
A origem do nome de Chay vem de um filme de Velho Oeste dos Estados Unidos. Na verdade, de uma tribo indígena retratada na telinha, os Cheyennes. Era formada por guerreiros que resistiram à invasão dos colonos sobre suas terras. Dona Rose gostou da história e deu ao filho o nome da destemida tribo. Chayene Medeiros nasceu em Alagoas, em 1990. Nos primeiros meses de vida, enfrentou seus primeiros desafios, por causa de uma série de alergias. Entre elas, uma respiratória, que o acompanhou durante boa parte da infância.

Aos 4 anos, ele veio para o Rio de Janeiro, mais precisamente, à cidade de Niterói, onde iniciou o tratamento para a alergia. O médico recomendou à mãe que colocasse o pequeno para praticar um esporte, que ajudasse a desenvolvê-lo fisicamente. Influenciada pela familiaridade que Chay tinha com a bola, seu brinquedo preferido, ela o levou para uma escolinha de futebol de areia na Praia de Icaraí, uma das mais tradicionais da cidade, à beira da Baía de Guanabara. E não demorou para ele se destacar.

– No futebol de areia não chegou a três meses jogando, o professor dele disse: “não, mãe, vamos levar ele para o futsal”. Aí pronto, levou ele para o futsal, acabou a vida dele, foi sempre compromisso. Foi federado como fraldinha e daí em diante começou a trajetória da gente nesse esporte.

O remédio funcionou. Aos poucos, Chay foi se vendo livre da alergia, ao mesmo tempo que criava raiz no esporte. Ele jogou futsal em clubes de Niterói, e chegou a se federar na categoria “fraldinha” do Botafogo, aos 7 anos de idade. Sucesso incentivado pelo pai, mas que acontecia à revelia da mãe, que desejava que ele priorizasse os estudos. O menino não teve escolha, se quisesse continuar no futebol, precisaria se dar bem na escola, e ele abraçou mais esse desafio.

Chay no futsal – Arquivo pessoal
Chay no futsal – Arquivo pessoal
Após uma prova, conseguiu uma bolsa de 50% em um tradicional colégio particular de Niterói. Aí foi a vez de o futebol dar aquela ajudinha, Chay ganhou mais 50% de bolsa por ser atleta federado. De modo que representava a escola em competições intercolegiais. Logo ele migrou mais uma vez de modalidade, e ganhou os campos do Tanguá Futebol Clube, a 50km de sua casa, e, Dona Rose continuou garantindo que o sonho do filho permanecesse vivo.

– Eram quase duas horas de van, três vezes por semana. Íamos de van, e voltávamos de de van. Às vezes, tinha prova no outro dia, ele vinha estudando na van. Ele estudava em uma escola que não era fácil. Chegava em casa, a gente tinha que bater matéria, fazer trabalho. Foi bem difícil a jornada dele entre a educação e o esporte.
Onde Chay ia, Dona Rose o acompanhava para garantir a segurança do filho, como no dia do supermercado. Até o 17 anos, quando, enfim, ela resolveu “cortar o cordão umbilical” e deixá-lo buscar o sonho por si próprio.

O SONHO DE SER PROFISSIONAL
Sem a presença da mãe, Chay ganhou a companhia do amigo Diogo Matheus que, assim como o atacante, buscava se tornar jogador de futebol. Amigos de infância e de escola, diariamente, os dois saíam do bucólico bairro de Ponta da Areia, atravessavam a Ponte Rio-Niterói, e passavam pela Avenida Brasil até chegar ao Bonsucesso, clube da zona norte do Rio. Ali Chay se consolidou na base e se tornou jogador profissional.

Chay no Colégio Plínio Leite. O atacante é o primeiro de pé da direita para a esquerda, Diogo é o terceiro – Arquivo Pessoal: Diogo Matheus
Chay no Colégio Plínio Leite. O atacante é o primeiro de pé da direita para a esquerda, Diogo é o terceiro – Arquivo Pessoal: Diogo Matheus
Em seguida, veio uma decisão ousada, aceitar uma proposta para jogar no futebol da Tailândia. Como muitos jogadores de origem humilde, enxergou no outro lado do mundo a oportunidade de conseguir a independência financeira.

O início não foi fácil. Ao chegar na Tailândia se deparou com uma cultura muito diferente, não falava outro idioma além do português. Aos poucos, teve de virar no inglês para começar a entender o que o técnico e seus companheiros falavam. A alimentação era outro problema.

– Eles comem muita pimenta. Eu dizia que não queria pimenta, dizia em Thai mesmo, e eles botavam pouca pimenta, achando que eu queria pouca (risos). Depois eu conheci outros restaurantes de outras nacionalidades, fui me adaptando à comida. Alguns vendiam steak. Encontrei restaurantes italianos, que tinham uma culinária mais parecida com a daqui.

Foi o campo o lugar em que Chay se encontrou e fez seu nome do futebol Tailandês, com destaque em 2010 e 2011. Daí veio o interesse do Kedah FA, time do país vizinho, a Malásia. O brasileiro embarcou em mais uma jornada. Antes, voltou ao Brasil para um pequeno período de férias, precisava ver a família e os amigos após dois anos fora. Foi nesse intervalo que viveu um dos piores momentos de sua vida.

Chay no futebol tailandês – Divulgação
Chay no futebol tailandês – Divulgação
Em um fim de semana, Diogo o convidou para um Chá de Bebê, na cidade de Araruama, na Região dos Lagos. Chay foi à festa com os amigos e a ex-esposa.

– Na saída, eu estava atravessando a rua para pegar um táxi e só ouvi o barulho. Não sei de onde veio, por que veio. só ouvi o barulho. Pegou de raspão no meu fígado, mas não acertou nenhum órgão vital. Passei por cirurgia e graças a Deus estou vivo.
Apesar do susto, Chay não demorou a voltar aos gramados. De certa forma, até forçou um pouco o retorno, por pressão do novo clube. Mesmo com uma trilha de pontos na barriga, em dois meses, estreava nos campos malaios. Precisava usar uma cinta para jogar. Ainda assim, os pontos chegaram a romper. As cobranças do técnico e de sua comissão não cessaram, e o jogador começou a ter muitos atritos. O desânimo foi tanto, que Chay voltou ao Brasil, e colocou a continuidade no futebol em xeque.

O RECOMEÇO NO FUT7
No Brasil, o mercado do futebol não acolheu o Chay como ele esperava. Se deparou com portas fechadas e por algum tempo chegou a desistir do sonho. Novamente, teve o amigo Diogo como dupla. Desta vez, os dois trabalhavam como office boys na empresa da família de Diogo. Bom aluno na época da escola, o jogador cogitou fazer faculdade de Educação Física e buscar outra profissão. Até que o futebol o seduziu de uma forma inesperada, emum novo terreno: a grama sintética.

Chay foi convidado por um amigo para jogar Fut7, como é conhecido o futebol de society. A princípio, eram partidas sem o compromisso de times profissionais, só por brincadeira, mas que remuneravam eventualmente. É no Fut7 que muitos jogadores desconhecidos complementam sua renda quando acabam as curtas temporadas dos clubes pequenos.

– Acabou que a brincadeira virou algo sério. Eu fui jogando, me adaptando muito bem e me tornei quem me tornei – conta.
Chay no Fut-7 – Divulgação
Chay no Fut-7 – Divulgação
Se tornou o melhor. Nos anos em que jogou no Fut7, Chay defendeu o Botafogo, mas também os rivais Flamengo e Fluminense. Chegou à Seleção Brasileira e conquistou o maior título da modalidade, a Copa do Mundo, em 2018. Antes, havia vencido a Copa América também, quando foi eleito o melhor jogador do continente. Os ventos começaram a mudar.

O RETORNO AO FUTEBOL DE CAMPO
Ex-jogador de futebol, Ricardo Alves atuou no Sub-20 do Bonsucesso entre 2008 e 2009 e lembrava de ver um novato, de 17 anos, se destacar na categoria, com muita rapidez e jogadas de habilidade. Então, quando resolveu entrar no ramo de agenciamento de jogadores, lembrou do ex-companheiro de base. Os dois retomaram a parceria de outrora. E a partir daí, Ricardo começou a procurar um clube para Chay, que voltava a vislumbrar uma vida nos gramados.

O recomeço foi modesto, no Bela Vista, depois no São Gonçalo, jogou o Paulista pelo Mogi Mirim, até que recebeu uma proposta melhor do Rio Branco, do Acre. Em 2019, recebeu um convite para voltar ao Rio e defender o América-RJ, na Série B1, do Carioca. Seu desempenho acabou chamando a atenção da Portuguesa-RJ. Em 2020, no time da Ilha do Governador, Chay manteve um nível alto, agora na primeira divisão do Carioca, o que lhe rendeu um contrato mais longo.

Chay, no Campeonato Carioca 2021 – Divulgação – Portuguesa/Nathan Diniz
Chay, no Campeonato Carioca 2021 – Divulgação – Portuguesa/Nathan Diniz
Depois da boa temporada, Ricardo viu os horizontes de Chay se ampliarem. Botafoguense, ele projetou no time do coração um bom lugar para emplacar o cliente. Chegou a entrar em contato com a diretoria alvinegra, que deu um banho frio nas suas pretensões. O Botafogo recém caíra para a Série B e vivia com um orçamento muito enxuto, e Chay era visto como uma aposta arriscada. Foi aí que o jogador começou a fazer sua propaganda. Desandou a marcar contra times grandes. Foram cinco gols, em 13 jogos no Carioca deste ano. Inclusive, sobre o Botafogo. Gol que foi comemorado de forma intensa. Não por desrespeito, mas com a ânsia de quem queria mostrar estar pronto para subir mais degrau na carreira.

NOVAMENTE, O BOTAFOGO
O desempenho no Carioca de 2021 atraiu propostas. Mas a meta de Chay era o time que o revelou no futsal, quando ele era apenas um “fraldinha”. Sob olhares desconfiados, Chay chegou ao Botafogo em maio deste ano, emprestado pela Portuguesa. Depois de tantas desilusões no futebol, viveu o processo de negociação com o Alvinegro de forma contida, tinha medo de que algo desse errado no caminho. Só se emocionou, quando pisou pela primeira vez no estádio Nilton Santos como atleta do Botafogo. Ali, na entrada do estádio, permaneceu comovido por alguns momentos, antes do primeiro treino.

Rapidamente, Chay mostrou que tinha sido a escolha certa. Foi titular em seu segundo jogo na Série B, e fez um gol contra o Coritiba. Muito técnico, veloz e solidário em campo, Chay vem se destacando ao formar uma boa parceria com o atacante Rafael Navarro. Seu desempenho cresceu ainda mais depois da chegada do técnico Enderson Moreira. Hoje, ele é o vice- artilheiro da equipe na Série B, com 8 gols, que ajudaram o Botafogo a se consolidar no G-4 da competição.

Chay assina contrato definitivo no Botafogo – Divulgação – Vitor Silva/Botafogo
Chay assina contrato definitivo no Botafogo – Divulgação – Vitor Silva/Botafogo
O desempenho, além do jeito irreverente nas entrevistas e na comemoração dos gols fizeram com que o jogador caísse no gosto da torcida. Até música, Chay ganhou. O jogador virou sucesso nas redes sociais, após inspirar uma paródia da famosa canção de Gloria Gaynor “I will survive”, criada pelos Irmãos Kelsen e Arthur Muniz. O vídeo da música, que chega a comparar o botafoguense com Ronaldo, Messi e Henry já tem cerca de um milhão de visualizações na internet.

Até o Botafogo entrou na onda e usou trechos da paródia no momento em que comprou Chay em definitivo da Portuguesa, até 2024. Ele, que ganhava um dos menores salários do elenco, recebeu um acréscimo com o novo contrato. Inegavelmente, o atacante vive o melhor momento de sua carreira no futebol, depois de uma trajetória cheia de percalços e superação. Mas, a jornada de Chay ainda não chegou ao fim.

– Eu não esperava. Mas a oportunidade veio, eu abracei e estou aqui de corpo e alma. Passa um filme na minha cabeça, porque há dois anos eu estava em outra modalidade. Hoje, estou me destacando no Botafogo e pretendo continuar. Que possa vir o acesso e títulos, que eu possa marcar meu nome aqui.